Introdução geral
A Quaresma é um
tempo oportuno para revisitarmos a nossa condição batismal, o que implica
guardar o precioso tesouro da fé, que brota da obediência à Palavra de Deus.
Sem verdadeira escuta das Escrituras, não é possível a fé. Mas o Deus que nos
fala na Bíblia fala igualmente na criação, na história do povo, nos
acontecimentos da vida e, de modo especial, nas celebrações. Na liturgia, a
Igreja comunica a Palavra do Senhor pela proclamação das Escrituras e pelos
sinais e ritos que dela extraem o seu significado (cf. SC 24). Contudo, quando
os ritos e símbolos perdem seu vínculo com a Palavra, e assim também a vida
cristã, a liturgia e demais expressões religiosas podem se degenerar em
idolatria.
Comentário dos
textos bíblicos
Na sequência do
itinerário quaresmal, a comunidade que adentrou com Jesus o deserto para vencer
o adversário (domingo das tentações) subiu ao monte para reconhecer sua
identidade filial e o apreço amoroso que o Pai lhe devota (domingo da
transfiguração). Seguindo os passos do Filho de Deus rumo à Páscoa, somos
convidados a aprofundar a relação com o Deus da aliança, buscando purificar
nossa experiência religiosa, que encontra no evangelho deste domingo um
parâmetro: Jesus é a expressão maior de obediência e de fidelidade a Deus,
maior mesmo que o próprio Templo.
I leitura: Ex
20,1-17 – As dez Palavras
Os dez mandamentos
são chamados de “dez palavras” (decálogo), isto é, as palavras que, de modo
proeminente, Deus entrega ao povo para que sejam observadas. Na versão do Êxodo
(primeira leitura), o decálogo é introduzido por duas oportunas recordações:
quem fala ao seu povo é o Deus libertador que o tirou da escravidão do Egito e
não tolera a idolatria, mas recompensa e protege os que guardam a sua lei; ele
é o Deus que, depois de ter criado tudo o que existe, santificou o sábado como
dia memorável do seu repouso. Mas é também o dia do repouso, da dignidade e da
liberdade humanas. Dessa forma, a lei de Deus, enquanto instituição anterior a
qualquer outra, existe para plenificar a vida do povo e para que já não se
reproduzam os esquemas de opressão do Egito.
A enumeração dos
dez mandamentos decorre dessas afirmativas importantes. Não se trata de um deus
estranho, mas daquele que já é conhecido, na sua potência do seu ato criador e
na força de seu braço libertador. Os mandamentos são frutos da salvação do povo
e da sua fé no Deus que o criou. Não são exigências preceituais sem história e
sem uma relação que as preceda e sustente. Estão fundamentados numa experiência
e num credo e podem, por isso, ser observados como resposta àquele que é o
proponente da aliança.
Em relação ao
evangelho, a primeira leitura tem uma função didática de nos apresentar o
horizonte do agir de Cristo e do povo. A recordação da libertação e do sentido
do sábado, como advertências para que não se reeditem os males sofridos,
servirá para entender o acontecimento da purificação do Templo. Além disso,
alguns elementos podem ser tomados em paralelo para apontar também um sentido
tipológico dos textos. O Deus que libertou o povo da escravidão do Egito
manifesta-se na pessoa de seu Filho, libertando-o de suas ações idolátricas. Na
primeira leitura, evoca-se a Páscoa dos judeus; no evangelho, a nova Páscoa da
ressurreição, por meio da imagem do novo Templo que se erguerá em três dias.
Antes, a obra da criação é concluída com o repouso depois do sexto dia. Depois,
ao terceiro dia, após o repouso de sua morte, sucede a recriação da humanidade
na ressurreição de Jesus.
Evangelho: Jo
2,13-25 – Um ato de violência ou de solidariedade?
Uma moldura abre e apresenta o evangelho: a festa da Páscoa dos judeus comparece no início e quase ao final do relato (v. 13.23). Entre esses dois versículos estão os elementos característicos e decisivos do evangelho: a expulsão dos cambistas com o chicote em punho, o diálogo com os judeus e a glosa explicativa do evangelista a respeito da resposta de Jesus aos judeus. Na área externa do Templo existia um grande átrio que circundava o santuário, chamado de soreg. Ali podiam entrar os pagãos e também ali se estabelecera o comércio de animais para o sacrifício e os cambistas. Na Páscoa, essa atividade era muito intensificada. Esse mercado tinha a função de impedir que o dinheiro pagão entrasse no Templo, mas provavelmente não sem ágio… Era também um esquema que impunha aos peregrinos comprar ali animais que serviriam de oferenda para os sacrifícios. Longe de ser um serviço aos romeiros do Templo, a prática convertera-se em um sistema de exploração, beneficiando não somente os cambistas e vendedores, mas também a casta sacerdotal. Ou seja, a estrutura religiosa do Templo estava de tal modo contaminada pela ganância e pelo pecado que comprometia a sua real função de culto a Deus. Diante dessa situação, Jesus reage vigorosamente, à semelhança dos profetas que sempre denunciaram os desvios das funções do Templo como lugar de oração e de fidelidade. Já segundo um pensamento rabínico, o Messias viria com um flagelo na mão para instaurar um novo tempo.
Uma moldura abre e apresenta o evangelho: a festa da Páscoa dos judeus comparece no início e quase ao final do relato (v. 13.23). Entre esses dois versículos estão os elementos característicos e decisivos do evangelho: a expulsão dos cambistas com o chicote em punho, o diálogo com os judeus e a glosa explicativa do evangelista a respeito da resposta de Jesus aos judeus. Na área externa do Templo existia um grande átrio que circundava o santuário, chamado de soreg. Ali podiam entrar os pagãos e também ali se estabelecera o comércio de animais para o sacrifício e os cambistas. Na Páscoa, essa atividade era muito intensificada. Esse mercado tinha a função de impedir que o dinheiro pagão entrasse no Templo, mas provavelmente não sem ágio… Era também um esquema que impunha aos peregrinos comprar ali animais que serviriam de oferenda para os sacrifícios. Longe de ser um serviço aos romeiros do Templo, a prática convertera-se em um sistema de exploração, beneficiando não somente os cambistas e vendedores, mas também a casta sacerdotal. Ou seja, a estrutura religiosa do Templo estava de tal modo contaminada pela ganância e pelo pecado que comprometia a sua real função de culto a Deus. Diante dessa situação, Jesus reage vigorosamente, à semelhança dos profetas que sempre denunciaram os desvios das funções do Templo como lugar de oração e de fidelidade. Já segundo um pensamento rabínico, o Messias viria com um flagelo na mão para instaurar um novo tempo.
Na fala de Jesus
observa-se um sentido autoritativo: a expressão “casa de meu Pai” evoca sua
relação singular com Deus. Mais que um ato violento, a expulsão dos vendilhões
do Templo é gesto autorrevelador, pois reuniu muitos elementos constitutivos da
identidade de Jesus: profeta, Messias e Filho de Deus. Convém lembrar que Jesus
reage à violência anteriormente praticada contra os pobres e humildes por meio
da exploração religiosa.
Já a objeção dos
judeus tem por trás uma atitude de rejeição que denota falta de fé e contrasta
com a dos discípulos. Os judeus lhe exigem uma comprovação, por meio de um
sinal, que justifique sua atitude. Já os discípulos recordam as Escrituras,
recorrendo ao Salmo 69, muito conhecido e apreciado na Antiguidade cristã como
um salmo messiânico. A objeção, contudo, viabiliza a resposta de Jesus, que não
responde à questão apresentada. Falando do seu corpo, como elucida a glosa do
evangelista (v. 21), Jesus utiliza uma palavra em grego que se diferencia do
edifício Templo, naós, isto é, santuário, o lugar onde o Santo habita. O verbo
destruir (o Templo) aludiu à sua morte, e o verbo erguer à sua ressurreição.
Este é o único sinal que Jesus lhes apresenta, em perspectiva futura: seu corpo
ressuscitado, erguido ao terceiro dia, é a morada de Deus, pois em Jesus se
realiza a fidelidade que já não se encontrava no Santuário de Jerusalém.
II leitura: 1Cor
1,22-25– Os judeus pedem sinais
Entre os cristãos
de Corinto, reinava outro tipo de violência e de idolatria: uma grande divisão
entre pobres e ricos e, ainda, entre os partidos que lá se formaram – os de
Paulo, os de Pedro e os de Apolo, bem como entre os de origem judaica e os de
origem grega. Paulo era considerado pelos coríntios como um pregador de menor
capacidade em relação a Apolo e a Pedro. Contudo, em sua pregação, o apóstolo
muda o foco. Sem defender-se mediante a sabedoria e a eloquência, afirma a cruz
de Cristo, único sinal apresentado como cerne da pregação da Igreja. A cruz
responde, sim, à demanda dos que foram chamados, dos que guardaram a fé, isto
é, dos que acolhem a Palavra de Deus, sendo considerada pelos judeus como
escândalo e como insensatez pelos gregos. Loucura e fraqueza para os seres
humanos, ela é expressão da sabedoria e da força divina. Esse é o cerne da
Palavra que gera a fé cristã e requer a adesão dos chamados, contrariando a
lógica dos que exigem sinais e explicações, tal como a dos judeus
escandalizados com Jesus no evangelho. A cruz de Cristo é sinal que se afirma
como maior do que as nossas recusas e infidelidades, pois nela está presente o
amor fiel de Deus, que chegou a ponto de nos dar o seu Filho único para que
tenhamos a vida.
Dicas para reflexão
O evangelho deste
domingo termina afirmando que Jesus conhecia o ser humano por dentro. A
Quaresma, como tempo de revisitar nossa adesão a Jesus, dada por meio do
batismo, supõe deixar de lado qualquer sinal de religiosidade que nos distancie
daquele que purificou o Templo de Jerusalém. A cruz e ressurreição de Jesus são
ápice e expressão de sua fidelidade a Deus. Auxiliados por esse Deus que
perscruta os corações, somos chamados a rever nossas infidelidades e nossa real
adesão à vontade do Pai.
O Templo, como
santuário onde Deus habita, é o corpo morto e ressuscitado de Jesus. O batismo
nos insere nesse mesmo corpo de Cristo, fazendo-nos passar continuamente da
morte para a ressurreição. Isto é, em Cristo somos também santuário onde habita
Deus. A destruição do Templo implica também fazer morrer em nós um tipo de
religiosidade idolátrica para fazer surgir nova edificação em Cristo, na qual
se dá uma adoração verdadeira.
A Campanha da
Fraternidade aborda neste ano o tema da violência. A superação da violência
pela via da fraternidade é requisito indispensável da vivência da fé cristã. O
ato de Jesus no Templo deve ser considerado como indignação contra outro tipo
de violência que se pratica ao destituir e explorar os pobres com argumentos
religiosos, mas distantes de Deus. O novo caminho instaurado por Jesus supõe o
enfrentamento da violência com a Palavra da cruz, que vence com base naquilo
que é aparentemente loucura e fraqueza.
Neste domingo convém recordar que o compromisso batismal comporta
sensibilidade para com os irmãos e irmãs mais pobres. Nossas liturgias e demais
instituições religiosas devem se pôr a serviço do soerguimento de tantos que
têm a dignidade violentada pelos sistemas econômico, social e religioso. A
defesa e a solidariedade com os pobres e a preocupação com a vida podem até ser
lidas como atos de violência, mas são justa indignação em favor dos que são sistematicamente
violentados pela exclusão.
(Pe. Danilo César dos Santos Lima, Presbítero da Diocese de Belo Horizonte, ROTEIROS HOMILÉTICOS, Vida pastoral)
Luis Filipe Dias |
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