Introdução
A liturgia deste domingo nos ajuda a refletir sobre um assunto
bem atual: O sofrimento humano. O livro de Jó nos confronta com algo
incompreensível a quem acredita que Deus recompensa os bons e castiga os maus
nesta vida: Jó é um homem justo e, apesar disso, perdeu tudo. Durante 40
capítulos, Jó protesta contra a injustiça de seu sofrimento sem explicação, mas
no fim Deus vai mostrar sua presença, e Jó se consola e se cala.
Também
Jesus, no Novo Testamento, nunca apresenta uma explicação do sofrimento, porque
não há explicação. Mas ele traz uma solução: assume o sofrimento. Inicialmente,
curando-o. No fim, sofrendo-o, em compaixão universal. Se Jó nos mostra que
Deus está presente onde o ser humano sofre, Jesus nos mostra que Deus conhece o
sofrimento do ser humano por dentro. E ele o assume até ao fim.
A
II leitura continua com os assuntos da Carta aos coríntios, que pretendem ter a
liberdade de fazer tudo o que têm direito de fazer. Paulo não concorda: nem
sempre devo fazer uso de meu direito. A caridade, a paciência para com o menos
forte na fé, valem mais que meu direito pessoal.
Comentários
bíblicos
Jó
foi fortemente provado por Deus. Perdeu tudo, até a saúde. Seus amigos não o
conseguem consolar (Jó 2,11). Jó contempla sua vida com amargura e só consegue
pedir que a aflição não seja demais e que Deus lhe dê um pouco de sossego. A
vida é um “serviço de mercenário”, diz. Ele desperta já cansado e, deitado, não
consegue descansar, por causa das feridas que o atormentam.
Procurando
uma resposta para o mistério do sofrimento, os amigos de Jó dizem que os justos
são recompensados e os ímpios, castigados. Mas Jó protesta: ele não é um ímpio.
A teoria da prosperidade dos justos, a “teologia da retribuição”, não se
verifica na realidade (21,5-6). Menos ainda o convence o pedante discurso de seu
amigo Eliú, tratando de mostrar o caráter pedagógico do sofrimento (cap.
32-37). Os amigos de Jó não resolvem nada. Vendem conselhos, mas não se
compadecem. Suas palavras não fazem sentido. Por outro lado, mesmo amaldiçoando
o próprio nascimento, Jó não amaldiçoa Deus; ao contrário, reconhece e louva
sua sabedoria e suas obras na criação: o abismo de seu sofrimento pessoal não
lhe fecha os olhos para a grandeza de Deus! E é exatamente por este lado que
entrará sossego na sua existência. Pois Deus se revelará a ele, tornar-se-á
presente em seu sofrimento – ao contrário de seus amigos sabichões –, e essa
experiência do mistério de Deus fará Jó entrar em si, no silêncio (42,1-6).
Evangelho:
Mc 1,29-39
Como
para preencher o que ficou aberto na I leitura, o evangelho nos mostra o Filho
de Deus assumindo nossas dores. A narrativa conta o fim do “dia em Cafarnaum”,
iniciado em Mc 1,21 (cf. domingo passado). Jesus continua com seus gestos e
ações que falam de Deus.
No
início de seu ministério, Jesus assume o sofrimento, curando-o. Mostra os
sinais da aproximação de Deus ao sofredor. Sinais feitos com a “autoridade” que
já comentamos no domingo passado. Ao sair do ofício sinagoga, naquele dia de
sábado, Jesus se dirige a casa de Pedro, onde cura a sogra que logo se põe a
servir, demonstrando assim sua transformação. Depois, ao anoitecer, quando
termina o repouso sabático, as pessoas trazem a Jesus os seus enfermos. Jesus
acolhe a multidão em busca de cura: novo sinal de sua misteriosa “autoridade”.
Os endemoninhados, os maus espíritos reconhecem seu adversário, mas ele lhes
proíbe dizer o que sabem dele (cf. domingo passado). E quando, depois, Jesus se
retira para se encontrar com o Pai e os discípulos o vêm buscar para reassumir
sua atividade em Cafarnaum, ele revela que a vontade de seu Pai o empurra para
outros lugares. Ele está inteiramente a serviço do anúncio do Reino, com a “autoridade”
que o Pai lhe deu e continua sua missão com autoridade.
No
fim de seu ministério, Jesus assumirá o sofrimento, sofrendo-o. Aí, sua
compaixão se torna realmente universal. Supera de longe aquilo que aparece no
livro de Jó. Se este nos mostra que Deus está presente onde o ser humano sofre,
Jesus nos mostra que Deus conhece o sofrimento do ser humano por experiência
própria.
Assim
como o livro de Jó, Jesus não apresenta uma explicação teórica do sofrimento.
Neste sentido, concorda com os filósofos existencialistas: sofrer faz parte da
“condição humana”. Não há explicação, mas, sim, solução: Jesus assume o
sofrimento. No livro de Jó, Deus se digna olhar para o ser humano que sofre. Em
Jesus Cristo, ele participa de seu sofrimento.
II
leitura: 1Cor 9,16-19.22-23
Esta
leitura continua com a 1ª carta aos Coríntios, abordando assunto muito
especial. 1Cor 8-10 é uma unidade que trata da questão sobre se o cristão pode
sempre fazer as coisas que, em si, não são um mal. Trata-se das carnes que
sobravam dos banquetes oferecidos pela cidade em honra das divindades locais.
Essas carnes eram, depois da festa, vendidas no mercado por “preço simbólico”.
O cristão, dizem os “esclarecidos”, pode comprá-las e comê-las sem problema, já
que não acredita nos ídolos. Paulo, porém, pensa diferente: a norma não é a
liberdade, mas a caridade (cf. Gálatas 5,13: usemos da “liberdade para nos
tornar escravos de nossos irmãos”). Se o uso de nossa liberdade causa a queda
do “fraco na fé”, que tem ainda resquícios de sua tradição pagã, então devemos
considerar a sensibilidade de nosso irmão.
Paulo
não concorda com a pretensa liberdade dos coríntios para fazerem tudo que têm
direito de fazer. Existe o aspecto objetivo (carne é carne e ídolos não
existem) e o aspecto subjetivo (alguém menos instruído na fé talvez coma as
carnes idolátricas num espírito de superstição; 8,7). Portanto, diz Paulo, nem
sempre devo fazer uso de meu direito. E alega seu próprio exemplo: ele teria o
direito de receber gratificação por seu apostolado, mas, como tal gratificação
poderia ser mal interpretada, prefere ganhar seu pão trabalhando.
A
gratificação de seu apostolado consiste no prazer de pregar o evangelho de
graça. Paulo teria os mesmos direitos dos outros apóstolos: levar consigo uma
mulher cristã (9,5), ser dispensado de trabalho manual (9,6), receber salário
pelo trabalho evangélico (9,14; cf. a “palavra do Senhor” a este respeito, Mt
10,10). Entretanto, prefere anunciar o evangelho de graça, para que ninguém
suspeite de motivos ambíguos. Ora, essa atitude não é inspirada apenas por
prudência, mas por paixão pelo evangelho: “Ai de mim se eu não pregar o
evangelho! Qual é meu salário? Pregar o evangelho gratuitamente, sem usar dos
direitos que o evangelho me confere!” (9,17-18). Se tivermos verdadeiro afeto
por nosso irmão fraco na fé, desistiremos com prazer de algumas coisas
aparentemente cabíveis; e a própria gratuidade será a nossa recompensa, pois
“tudo é graça”.
Pistas
para reflexão
As
leituras deste domingo estão interligadas por um fio quase imperceptível:
enquanto Jó se enche de sofrimento até ao anoitecer (I leitura), Jesus cura o
sofrimento até ao anoitecer (evangelho). O conjunto do evangelho mostra Jesus
empenhando-se, sem se poupar, para curar os enfermos de Cafarnaum. E, no dia
seguinte, o poder de Deus que ele sente em si o impele para outros lugares, sem
se deixar “privatizar” pelo povo de Cafarnaum. A paixão de Jesus é deixar sair
de si o poder benfazejo de Deus. Ele assume, sem limites, o sofrimento do povo.
Ele sabe que isso é sua missão: “Foi para isso que eu vim”. Não pode recusar a
Deus esse serviço pela salvação da humanidade.
Nosso
povo, muitas vezes, vê nas doenças e no sofrimento um castigo de Deus. Mas
quando o próprio Enviado de Deus se esgota para aliviar as dores do povo, como
essas doenças poderiam ser um castigo divino? Não serão sinal de outra coisa?
Há muito sofrimento que não é castigo, mas, simplesmente, condição humana,
condição da criatura, além de ocasião para Deus manifestar seu amor. O
evangelista João dirá que a doença do cego não vem de pecado algum, mas é
oportunidade para Deus manifestar sua glória (Jo 9,3; cf. 11,4).
Por
mais que o ser humano consiga dominar os problemas de saúde, não consegue
excluir o sofrimento, pois este tem outra fonte. Mas é verdade que o egoísmo
aumenta o sofrimento.
O fato
de Jesus apaixonadamente se entregar à cura de todos os males, também em outras
cidades, é uma manifestação do Espírito de Deus que está sobre ele e que renova
o mundo (cf. Sl 104,30). O evangelista Mateus compreendeu isso muito bem,
quando acrescentou ao texto de Mc 1,34 a citação de Is 53,4 acerca do Servo
sofredor: “Ele assumiu nossas dores e carregou nossas enfermidades” (Mt 8,17).
E, se pelo pecado do mundo, as dores se transformam num mal que oprime a alma,
logo à frente Jesus se revelará como aquele que perdoa o pecado (cf. Mc
2,1-12).
Também
se hoje acontecem curas e outros sinais do amor apaixonado de Deus que se
manifesta em Jesus Cristo, é preciso que reconheçamos nisso os sinais do Reino
que Jesus vem trazer. Não enganemos as pessoas com falsas promessas de
prosperidade, que até causam nos sofredores um complexo de culpa, mas, em meio
ao mistério da dor, dediquemo-nos a dar sinais do amor de Jesus e de seu
Pai.
Luis Filipe Dias |
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